Como é da experiência comum de todos os peritos médicos que dedicam a sua prática profissional à medicina legal, avaliar incapacidades e deficiências é matéria de extrema delicadeza e complexidade. Por múltiplas razões, o rigor, a imparcialidade e a objetividade que procuramos colocar no nosso trabalho, não é fácil de alcançar. E a principal razão é que, tal como a clínica médica, a medicina legal não é uma ciência exata. Dois – vezes – dois pode ser quatro mas para quem trabalha nesta área seguramente não estranha que o resultado desta conta seja três, cinco ou mesmo seis… Bem entendido que não estamos a falar de pura arbitrariedade, da qual os peritos médicos fogem como o diabo da cruz, mas de aspetos ligados à subjetividade do perito e da matéria em estudo que o acto pericial sempre envolve. Nós não temos que nos encolher ou sentir rebaixados por causa disso, antes pelo contrário. Temos mesmo que aceitar que a esta subjetividade existe para podermos decidir bem! Na realidade, apesar deste aspecto menos bom, o perito médico virtuoso, orienta o seu decidir pelos caminhos da ciência médica, a qual cada vez mais se apoia em estudos sistemáticos com vários níveis ou graus de evidência médica. A clínica forense é assim uma ciência que aguça o engenho do saber fazer e o sentido artístico de quem a pratica. Daí que esta área do conhecimento médico (a medicina legal) seja uma prática médica que enche o coração de muita satisfação e alegria de que a pratica com empenho.
Temos reparado, na nossa prática pericial médica de muitos anos, quer no nosso consultório médico Mediperitus quer nos tribunais e ainda em outras instituições ( o Instituto da Segurança Social, a Caixa Geral de Aposentações, a Associação Nacional de Deficientes Sinistrados do Trabalho) que o conhecido «Atestado Multiuso» não é tomado em consideração pelos senhores peritos médicos e é até escamoteado pejorativamente por eles. O que não nos parece correto e achamos até que é censurável. Pois, consideremos. Os médicos que atestam o referido atestado médico não são peritos médicos? Serão tais colegas de inferior formação médico-legal do que todos os outros peritos? Serão eles uns incompetentes que não sabem o que estão a fazer? Não defendem eles, tal como nós, os imperativos ético-deontológicos da Ordem dos Médicos? Ora, a resposta a estas perguntas vem provar que os pareceres médicos legais plasmados nos referidos «Atestados Multiuso» devem ser tomados em consideração por todos os colegas imbuídos de missões de caráter médico-legal. Por todas as razões do Mundo mas a principal é que ninguém é detentor da verdade absoluta!
É certo que a avaliação da (s) incapacidade (s) de pessoas com deficiência obedece a certas particularidades como o acesso a medidas e benefícios previstos na lei, nomeadamente de ordem fiscal, mas isso não lhe retira o valor pericial que merecem. É preciso considerar que esta avaliação teve o «olhar» de uma junta de médicos (em regra, três médicos) e por isso não se pode negar o valor pericial de um tal documento, no que incorríamos de falha ético- deontológica censurável e, pior ainda, se perdia a perspetiva pericial médica original já formulada por outros peritos (em regra, três médicos reunidos na junta médica). E um perito médico virtuoso não pode em caso algum deixar de apreciar ou ignorar outras ideias já formuladas e equacionadas por outros sobre aquele assunto. Esta nossa maneira de estar que nos parece verdadeiramente digna, razoável e salutar, só pode enriquecer e tornar mais robusta e acertada a nossa avaliação pericial e deixar-nos de consciência mais descansada pois a nossa apreciação acaba por ser a conclusão de tudo o que «outros já tinham refletido e dito sobre o caso». E ninguém ousa contestar que duas cabeças pensam sempre melhor do que uma cabeça só! Com a mais valia que a pessoa vítima de uma incapacidade e ou deficiência que estamos agora a avaliar ficar satisfeita com o nosso trabalho, depositando-lhe a confiança e a credibilidade que desejamos alcançar.
Alicerçados na nossa experiência médico-legal de muitos anos e na muita escassa bibliografia portuguesa existente sobre o assunto, neste capítulo alinhavamos algumas ideias mestras sobre os procedimentos periciais médicos que devem ser seguidos. Socorremo-nos, em particular, de um trabalho bem sistematizado da autoria de Maria Manuela Peleteiro (PELETEIRO, 2022) bem como no exposto na Circular Normativa No: 03/ASN, de 22.01.2009 (DGS).
Data de Produção de Efeitos da Incapacidade Atribuída
Nos casos de patologias congénitas não corrigíveis por meios conservadores ou cirúrgicos (como é o caso da cifoescoliose congénita já estruturada, cardiopatias congénitas, problemas neurossensoriais oculares e auditivos congénitos profundos, rim único, et cetra , et cetra) devemos considerar a data de nascimento como o referencial para a produção de efeitos da apreciação pericial médica realizada. Nos casos de patologias, défices funcionais ou deficiências estabilizadas, não progressivas, como é o caso frequente de amputações de membros inferiores em vários níveis, sequelas músculo esqueléticas da poliomielite, parésias e plegias de diversa etiopatogenia, cegueira total e cofose (surdez profunda), entre outras situações clínicas, os peritos devem levar em conta a data do evento patológico ou ocorrência (como ocorre fidedignamente com toda a sinistralidade), a data em que foram realizados os exames complementares de diagnóstico pertinentes ao caso clínico (por exemplo, a data do audiograma tonal de sons puros com timpanograma), a data do procedimento médico (por exemplo, a data de realização da endoscopia digestiva alta com a biópsia), a data da intervenção cirúrgica diagnóstica e ou terapêutica.
Nos casos clínicos em que a evidência médica sugira uma patologia, défice funcional ou deficiência progressiva, independentemente das medidas médicas e ou cirúrgicas bem instituídas, como são os casos de patologia do foro psiquiátrico grave (Psicoses), neurológico (Doença de Parkinson e Síndromes demenciais), cardiovascular (Hipertensão arterial de difícil controlo com atingimento de órgão alvo, insuficiência cardíaca congestiva), pulmonar ( Doença pulmonar obstrutiva crónica DPOC sob Oxigenioterápia), metabólica (Diabetes mellitus de difícil controlo metabólico com grave repercussão de órgãos alvo – coronariopatia aterosclerótica, retinopatia; glomerulopatia), reumático (Espondilite anquilosante, lúpus eritematoso sistémico, artrite reumatoide), a data de referência para a produção de efeitos da avaliação pericial médica será a do relatório clínico detalhado recente do (s) médico (s) assistente (s).
Para a patologia, défice funcional ou deficiência em que o conhecimento médico atual sugira uma evolução da história natural para a cura clínica por meios médicos de natureza conservadora (medicamentos – anemia, fisiatria, psicoterapia – depressão) ou cruenta (cirurgia) (ressecção tumoral minimamente invasiva ou alargada, transplantação de órgão) devem ser tomadas em consideração as datas em que foram apurados os diagnósticos clínicos, as datas de realização dos exames complementares de diagnóstico (data da biópsia e da histopatologia, data da ressonância magnética ou da TAC ) e ou dos procedimentos médicos (data da videotoracoscopia ou da broncofibroscopia com biópsia e lavado broncoalveolar) e ou das cirurgias realizadas. Em alternativa, considerar a data do relatório clínico detalhado recente do (s) médico (s) assistente (s). No caso de patologia, défice funcional ou deficiência de fase aguda, o atestado médico passado deve contemplar uma data de reavaliação por junta médica.
Avaliação de Incapacidades de Acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (TNI), aprovada pelo Anexo I do DL No 352/2007, de 23 Outubro
Oncologia
Os requisitos indispensáveis à avaliação pericial médica são a informação ou relatório clínico do Serviço de Oncologia, o relatório do exame anatomopatológico e da histopatologia, a data de realização da biópsia, a data de realização dos exames de imagiologia pertinentes (por exemplo, a ressonância magnética da mama, a TAC toráxica ou abdomino-pélvica ou a cintigrafia óssea)
TUMOR CLASSIFICADO COMO «IN SITU»
Afixar uma incapacidade permanente parcial até 60 % – Capítulo XVI – IV – No 3 [0.26 – 0.60].
Deve ser considerada a reavaliação ao fim de dois (2) anos, findo os quais se valorizarão as disfunções consequentes aos tratamentos que foram instituídos (quimioterapia, cirurgia, radioterapia).
TUMOR MALIGNO SEM METASTIZAÇÃO OU COM INVASÃO GANGLIONAR LOCO-REGIONAL
Afixar uma incapacidade permanente parcial de 60 % – Capítulo XVI – IV – No 3 [0.26 – 0.60] que se manterá por um período de cinco (5) anos desde a data do diagnóstico. Depois deste período, em regime de vigilância clínica e sem evidenciar sintomatologia ou lesões, desvalorizar a referida doença oncológica como crónica, afixando-lhe uma desvalorização tendencialmente para o valor mínimo do intervalo do Capítulo XVI – IV – No 2 [0.10 – 0.25], à qual devem ser acrescidas as incapacidades resultantes de défices funcionais e ou deficiências resultantes do tratamento do tumor maligno.
No caso de tumor maligno com metastização à distância afixar uma incapacidade permanente parcial de 80 % pelo Capítulo XVI – IV – No 4 [0.80 – 0.95] até sete (7) anos da data do diagnóstico. Neste caso, após sete (7 anos) da data de diagnóstico, em regime de vigilância clínica e sem evidenciar sintomatologia ou lesões, desvalorizar como doença oncológica crónica atribuindo uma incapacidade permanente parcial entre 10 e 25 %, tendencialmente para o valor máximo, pelo Capítulo XVI – IV – No 2 [0.10 – 0.25], à qual devem ser acrescidas as incapacidades ligadas às disfunções consequentes do tratamento do tumor maligno.
TUMOR MALIGNO COM INSUCESSO TERAPÊUTICO E COM CURTA ESPERANÇA DE VIDA
Neste caso atribuir 95 % de desvalorização pelo Capítulo XVI – IV – No 4 [0.80 – 0.95], definitiva, sem data para reavaliação.
REATIVAÇÃO OU RECIDIVA DE DOENÇA ONCOLÓGICA
Neste caso deverá proceder-se em conformidade com o descrito nos pontos anteriores.
Particularidades relativamente aos relatórios e pareceres médicos acompanhantes do pedido de junta médica
ARTICULADO LEGAL QUE REGULA O ATESTADO MÉDICO DE INCAPACIDADE MULTIUSO (AMIM)
Decreto – Lei no 202/96, de 23 Outubro – Estabelece o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previsto na lei, alterado e republicado pelo Decreto – Lei no 291/2009, de 12 Outubro.
Decreto – Lei no 307/2003, de 10 de Dezembro – Aprova o cartão de estacionamento de modelo comunitário para pessoas com deficiência condicionadas na sua mobilidade, alterado pelo Decreto – Lei no 17/2021 , de 27 de Janeiro e pela Lei no 48/2017, de 7 de Julho.
Lei no 22-A/2007, de 29 de Junho – Procede à reforma global da tributação automóvel, aprovando o Código do Imposto sobre Veículos e o Código do Imposto Único de Circulação (IUC) e abolindo, em simultâneo, o imposto automóvel, o imposto municipal sobre veículos, o imposto de circulação e o imposto de camionagem.
Decreto – Lei no 8/2011, de 11 de Janeiro – Aprova os valores devidos pelo pagamento de atos de autoridades de saúde e de serviços prestadores por outros profissionais de saúde pública e melhor clarificação na Orientação da DGS no 001/2017, de 11 de Janeiro de 2017.
Decreto- Lei no 113/2011, de 29 de Novembro – Regula o acesso às prestações do Serviço Nacional de Saúde por parte dos utentes no que respeita ao regime das taxas moderadoras e à aplicação de regimes especiais de benefícios
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PORTUGAL. Direcção-Geral da Saúde. Circular Normativa No 03/ASN, de 22.1.2009 – Avaliações de Incapacidade por Doença Oncológica.
Peleteiro, M. Data de Produção de Efeitos da Incapacidade Atribuída. Lisboa: Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. – Núcleo de Coordenação Regional das Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade, 2022